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JANEIRO

 

Pedra de Anel

 

 

Esta Pedra de Anel é o vestígio mais antigo da presença judaica no território actualmente português e está exposta na exposição temporária do Museu Cidade de Ammaia.
A imagem representa:
"SÍMBOLOS JUDAICOS. Ao centro, assente numa base de três pés, um candelabro de sete braços (menorah), cada um deles sobreposto por uma vela acesa com a chama inclinada para o centro. A ladeá-lo, à direita, uma palma (lulav) e, à esquerda, um chifre de carneiro (shofar) e um limão (ethrog) com um pequeno caule e duas folhas"
in Graça Cravinho, Catálogo Exposição Ad Aeternitatem, 2015.
Cronologia: Séc II - III d.C. ou Séc III d.C.

 


 

SETEMBRO

 

Espelho

 

 

Os romanos, principalmente aqueles que tinham riqueza e escravos, prestavam especial atenção ao cuidado e higiene corporal possuindo por isso uma grande variedade de produtos de higiene pessoal, cosméticos, unguentos e perfumes.
A qualidade destes produtos dependia da sua classe social e dos seus recursos. Preparavam-se em casa ou eram adquiridos em pequenos recipientes: os balsamários ou unguentários (unguentaria ou unguentarium), as píxides e os alabastros.
Para a preparação, extracção do recipiente e aplicação dos unguentos, assim como para medir líquidos, usava-se a lígula, uma vareta normalmente de bronze, que terminava num dos lados em colher ou espátula e no outro era arredondado para permitir recolher e deixar cair, gota a gota, o unguento. Para auxiliar ainda na preparação dos unguentos usavam-se pequenas placas de mármore ou ardósia (coticula ou coticulae).
Para além destes instrumentos, dos cosméticos e perfumes, as caixas de higiene incluíam pinças depilatórias (volsella ou vulsella), pentes (pecten), navalhas de cortar o cabelo e de barbear (cultor tonsorius) de bronze ou ferro, instrumentos para limpar os dentes, os ouvidos e as unhas (respectivamente o dentiscalpium, o auriscalpium e o unguicularium) colocados em conjunto numa argola. 
Outro instrumento muito usado na higiene do corpo, e com frequência nos banhos públicos, é o estrígil (strigilum), uma peça em bronze, ferro ou osso usado para raspar óleos, suor ou sujidade do corpo.
Os romanos utilizavam ainda espelhos portáteis com cabo (specullum), normalmente circulares embora se conheçam exemplares rectangulares. Eram de bronze, com elevada percentagem de estanho, porque era este que garantia o reflexo ao polir fortemente a superfície. O outro lado podia ser decorado. Também se conhecem exemplares em ligas de prata e ocasionalmente em vidro prateado; podiam ter molduras às quais eram fixos com betume. Embora a maioria dos espelhos fossem de mão também existiam de maiores dimensões; ou ainda com tampas como os espelhos modernos. 
 
A peça que apresentamos este mês é um espelho de mão constituído por um disco circular e por um cabo. Estes dois elementos não correspondem originalmente à mesma peça, mas optou-se por os expor em conjunto, uma vez que se conhecem espelhos completos com as duas partes muito semelhantes aos nossos exemplares.
 
Nº Inventário - MAMM010082
Material - liga de cobre
Peso (gr) - 13,33+10,68 
Medidas máximas (cm) - Diâm.: 9,7; Esp.: 0,14
Descrição - Fragmentos de disco de espelho circular, com ambos os lados polidos. O bordo é perfurado com orifícios dispostos mais ou menos regularmente. A frente apresenta 3 linhas concêntricas incisas exactamente a seguir aos orifícios. O verso, também decorado com linhas concêntricas incisas, apresenta uma a seguir aos orifícios, depois um conjunto de quatro e ao centro mais três.
 
 
Nº Inventário - (EQD)Cu.01.Cj.007
Material - liga de cobre
Peso (gr) - 9,11
Medidas máximas (cm) - Comp.: 7,14; Larg.: 1,94; Esp.: 0,95
Descrição - Cabo de espelho, com secção mais ou menos circular, com forma cruciforme na zona de apoio do espelho. Apresenta duas molduras horizontais de forma anular a meio do cabo e na parte inferior.  As laterais da parte superior e a parte inferior do cabo estão fracturadas.
 
 
 
 
Nº Inventário - MAMM010082
Material - liga de cobre
Peso (gr) - 56,18
Medidas máximas (cm) - Diâm.: 8; Esp.: 0,24
Descrição - Disco de espelho circular, polido numa das faces. O disco apresenta um recorte que corresponde ao encaixe do cabo.
 
Carina Maurício
Conservadora Restauradora
Laboratório de Conservação e Restauro 
Fundação Cidade de Ammaia

 

 

 

AGOSTO

 

Cristal de Quartzo

 

 

Cristal de quartzo 
Nº de Inventario: MAMM010143
Proveniência: Doada por Joaquim Bonacho à Fundação Cidade de Ammaia 
Tipo de Material: Quartzo branco
Dimensões: Comprimento: 29cm Largura: 24 Altura: 11cm
 
Definição:
Quartzo é considerado o segundo mineral mais abundante na Terra, a sua forma mais conhecida são os cristais de quartzo, caracterizados por uma estrutura trigonal e composta por tetraedros de sílica (dióxido de silício, SiO2),que estão presentes em todos os tipos de formações rochosas, sejam ígneas, metamórficas ou sedimentares. As formações dos quartzos fazem parte de um processo geológico que pode levar milhares de anos, o quartzo é um dos minerais comuns mais resistentes, com um alto grau de dureza, ficando atrás apenas de minerais raros como o diamante e o topázio. Outra característica típica dos cristais de quartzo é a sua diversidade de cores, ou seja, são alocromáticos. A palavra quartzo deriva de um termo alemão de origem desconhecida, mas que teria sido aplicado pela primeira vez por Georgius Agricola, considerado o pai da geologia”. Existem diversas variedades de quartzo, alguns são mesmo considerados pedras semipreciosas que eram utilizadas na confeção de joias e esculturas e outros utensílios de adorno. 
 
A Cidade Romana de Ammaia no século. I d.C. era já considerada uma urbe organizada que geria de forma eficaz todo o seu território circundante, e que explorava todos os seus recursos naturais. Toda esta área era rica em minerais (ouro, prata, chumbo, hematite) e pedras (granito, quartzito, xisto, gnaisse e quartzo). A exploração local do quartzo puro ou cristal de rocha era muito importante para a produção de vidro e joias.
 
Plínio-o-Velho, o conhecido naturalista romano, recorrendo a um autor lusitano cuja obra se perdeu, referiu em duas ocasiões a área envolvente à Ammaia, realçando o aparecimento de cristal de rocha, um mineral semiprecioso, também utilizado no fabrico do vidro. 
 
 “Cornelius Bocchus refere” et in lusitania perquam  mirandi ponderis in Ammaeensibus iugis, depressis ad libramentum aquae puetis”  Refere Cornélio Boco que na Serra de Ammaia na Lusitânia foi encontrado cristal com um peso surpreendente, ao aprofundarem um poço até ao nível do veio de água.  
“Bocchus auctor est in Hispania repertas quo in loco crystallum dixit ad libramentum puteis defossis erui, chysolithon XII pondo a se uisam“ 
Boco refere ainda que na Hispânia também se encontraram (gemas), no mesmo lugar em que apareceu cristal ao cavarem um poço até ao nível do veio de água e que ele mesmo viu um crisólito de doze libras.
 
Plinío, o Velho; séc., I d.C.   
Talvez a mesma abundância de cristal de rocha nesta região se encontre atestada num texto árabe de Al-Himyari (séc. XV), que dá a notícia da existência de minas deste recurso mineral a 40 milhas a norte de Badajoz.
 
A riqueza desta região em cristal de rocha surge foi evidenciada no decurso do levantamento realizado sobre o território da Ammaia com o Projeto Científico Europeu “Radio-Past - Radiografy of the past“. Os resultados vieram comprovar a existência de algumas pedreiras antigas: uma de cristal de rocha, em Naves, e três de granito. Em duas das pedreiras de granito localizadas na Pitaranha e Marvão verificaram-se também filões de quartzo. Dentro do perímetro da Cidade Romana de Ammaia, em contexto de escavação, foram também recolhidos diversos cristais de quartzo de diferentes tamanhos. 
De acordo com o estudo realizado sobre o ” Espólio funerário de Ammaia: os vidros” pelo Investigador Mário da Cruz parece haver uma relação da exploração do cristal de rocha e o fabrico local de vidro. Foram encontrados na área da Porta Sul, lascas de vidro bruto e restos de fabrico, que poderão indicar a existência de uma oficina de vidreiro na Cidade. Salienta-se ainda que a Ammaia possui em exposição no seu Museu uma das melhores coleções de vidros romanos em solo português, contando com uma coleção notável de peças inteiras e em ótimo estado de conservação, que foram recolhidas nas necrópoles da cidade, nos inícios do século passado.
 
Dulce Osório
(Bolseira da FCT)
Conservadora-restauradora no Laboratório da Fundação Cidade de Ammaia
 
Referências bibliográficas
 Ad AETERNITATEM; Os espólios funerários de Ammaia a partir da colecção Maças do Museu Nacional de Arqueologia; Laboratório HERCULES ;Projeto IMAGOS.
Corsi, C, &, Vermeulen, F; Ammaia I: The survey. A Romano – Lusitanian Townscape Revealed; Ghent, Academia Press.(2012) 
Cravinho,G.; Some engraved gems from Ammaia, Universidade Nova de Lisboa, (2010).
Guerra, A.; ( 1995: 42-43 E 138-139); Plínio-o-velho, Naturalis Historia, XXXVII, 24,127.
Pereira, S.; A Cidade Romana de Ammaia: escavações arqueológicas, 2000-2006, IB Maruan, nº especial(III) Edições Colibri, Marvão (2009).
 

 

 

JULHO

 

Pulvinum
Elemento arquitetónico de altar funerário monumental (mausoléu)
 
 
 
 
Pulvino esquerdo
Nº de Inventário: MAMM010018
Dimensões: Altura: 0,33m – 0,35m; Comprimento máx. 0,83m; Largura: 0,45m
 
Este elemento arquitetónico, em exposição no Museu da Cidade de Ammaia, corresponde a um dos componentes decorativos de ara funerária monumental, sendo colocado na parte superior do monumento, coroando os mausoléus romanos em forma de altar. Trata-se de uma peça em granito, a principal matéria-prima construtiva utilizada nos edifícios da cidade romana de Ammaia. 
 
Este pulvino monumental foi encontrado nas imediações da área urbana da Ammaia, junto à estrada municipal que liga São Salvador de Aramenha ao Porto da Espada. Na altura da sua descoberta, servia de passadiço sobre uma das condutas de água que cruzam a Quinta do Deão, vindas do “Olheirão”. O aparecimento deste elemento arquitetónico permitiu nessa época antever a possibilidade de existirem grandes monumentos funerários nas necrópoles romanas da cidade, motivo da sua integração na exposição permanente do museu.
 
 
No decurso dos trabalhos de geofísica que foram desenvolvidos no âmbito do projeto Radio-Past, foi possível detetar pelo menos uma área onde se verificaram anomalias no subsolo que permitem dizer com alguma segurança que aí foram construídos mausoléus romanos. No entanto, poderão existir ainda outras áreas de necrópole com este tipo de estrutura funerária monumental. Os vestígios detetados parecem evidenciar construções em opus quadratum, grandes blocos pétreos de forma retangular.
 
O monumento propriamente dito, seria constituído por uma planta quadrangular que definiria o corpo do altar que constituía a câmara funerária, de altura variável e ocasionalmente escalonada. Os pulvinos correspondiam aos coroamentos monumentais elaborados como elementos arquitetónicos separados, colocados em grupos de dois e em lados opostos e de forma simétrica. Durante o século I d.C. desenvolveu-se um outro tipo de monumento em que o altar se individualiza relativamente à câmara funerária que passa a estar localizada numa base mais desenvolvida, por vezes subterrânea.
 
À semelhança de outros elementos arquitetónicos romanos da Ammaia, este pulvino foi encontrado numa área que não seria a sua localização original, tendo em conta o facto de ter sido reutilizado numa outra função. Em virtude da descontextualização arqueológica, é difícil propor uma cronologia precisa para esta peça, contudo, podemos usar para esse fim paralelos tipológicos ou estilísticos de outros sítios. Se nos socorrermos a vários exemplos existentes na Península Ibérica, a cronologia destes monumentos é muito ampla, podendo ir desde a época de Augusto até ao século II d.C. Possivelmente, os monumentos originais corresponderiam a modelos itálicos de mausoléus em forma de altar e poderão datar dos primeiros momentos de fundação da cidade de Ammaia.
 
 
As características técnico-estilísticas foram condicionadas pelo uso do material granítico, o que dificultou o talhe e gravação em baixo relevo da peça. O pulvino apresenta uma hexapétala (seis pétalas) gravada no lado esquerdo com o auxílio de um compasso. Uma vez concluída a lavra da pedra, mediante o rebaixamento do resto da superfície, o motivo fica representado de forma mais saliente na parte frontal do monumento, obtendo-se assim um baixo-relevo com contornos nítidos, ainda que sem muitos detalhes, dada a natureza do próprio material de fabrico, o granito.
Tipologicamente, todos os baixos-relevos dos pulvinos são aparentados. Em todos os casos, o motivo principal da roseta de seis pétalas aparece marcado por um círculo que o separa do resto do elemento arquitetónico.
 
 
Joaquim Carvalho
Fundação Cidade de Ammaia
Membro do (CIDEHUS) Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades - UÉvora
 
 
Referências bibliográficas:
P. Mateus Cruz, 1995, “Proyeto de Arqueologia urbana en Mérida: desarrollo y primeiros resultados”, Extremadura Arqueológica, IV. 
Alcázar, Luis Baena del, Fortes, José Beltrán, 1996, “Pulvinos monumentales de Mérida”, Anas nº 9, ISSN 1130-1929, págs. 105-131.
Santos, Filipe, Carvalho, Pedro C., 2008, “Aspectos do Mundo Funerário Romano na Beira Interior. As estruturas funerárias Monumentais da Quinta da Fórnea II (Belmonte), Conimbriga, 47, págs. 127-143.
 

 

JUNHO

 

Do subsolo à luz do dia, do fragmento à forma, do laboratório ao museu.

 

 

O caso de estudo da bilha cerâmica que se apresenta não se confina às dimensões e informações técnicas, morfológicas e funcionais deste recipiente. 
 
A sua descoberta e análise é reveladora da singularidade e potencial patrimonial, científico e turístico que a cidade de Ammaia proporciona a arqueólogos, técnicos de património e visitantes. Esta é igualmente a história de como vinte fragmentos cerâmicos, recolhidos em 2009, na área das termas, em contexto de escavação com metodologia arqueológica se transformam numa bilha no ano seguinte. A crónica de como vinte fragmentos da mesma bilha voltam a ser um recipiente volvidos vários séculos, fazendo parte integrante de uma tese de doutoramento e como depois de aplicadas diversas técnicas de conservação e restauro no laboratório da Fundação Cidade Ammaia são expostos no seu museu. 
 
Nº de inventário: 1069       
Tipo de material: cerâmica
Dimensões: 
ø ext bordo: 6,3 cm;
ø bojo: 16 cm
Alt. : 23,2 cm
Cronologia: 225-250/275+  
 
Bilha de bordo extrovertido oriunda das Termas, setor D, Amb D, estrato [112]. Regista perfil elíptico com aperto na zona superior, com inflexão e ressalto formando dobra, lábio boleado, colo cilíndrico alongado formando L, asa vertical arrancando ao nível do colo com desenvolvimento até ao ombro, tripla moldura com curvatura muito leve, horizontal e paralela entre o colo e o ombro, fundo de base côncava, de assentamento discoide, levemente em aresta.
 
 

 

Esta categoria morfológica de bilhas XV. 2. 1. B. (Dias, V. S., 2014, I: 249-250; II: p. 119, 268, 676, Est. CI;) regista variantes com lábio amendoado e base anelar com pé pouco desenvolvido na escavação designada como Estacionamento 1, registando nesse caso cronologia do segundo quartel do séc. II. 
Os paralelos são maioritariamente de necrópoles exceto os casos especialmente associados ao agora exposto nº 1069 que documentam especial proximidade com São Cucufate (Pinto, I. V., 1999, p. 523-525) e com a olaria da Quinta do Rouxinol (Santos, 2011, est XXX, nº 753, p. 94). O exemplar do Seixal é de dimensão inferior e surge com a seguinte cronologia: finais II-III; III-IV; IV-V. 
As necrópoles em causa são todas da região de Elvas e os exemplares datam da segunda metade séc. I início do séc. II (Nolen, J. U. S., 1985b, Est. III, nº 17, 63; Est. IX, nº 64, 65; Est. XI, nº 69, 72, 78) e proximidade com a abordagem de Abel Viana (Viana, A. e Deus A. D., 1958, Est. VIII, foto 5, nº 201 foto 3, nº 211). A proximidade morfológica está igualmente documentada em publicação dedicada a São Salvador de Aramenha datada da década de setenta do século passado (Neves, J. C., 1972, Est. V, nº 32 e 33). 
 
 
 
Faculta-se deste modo “nova morada” a vinte fragmentos cerâmicos que se desconhecia. “Restaurar” artefactos oriundos de uma cidade cujos habitantes emergem fragmento a fragmento através dos recipientes e seus conteúdos é gerar conhecimento, desvendando hábitos de consumo, preferências de produção, gostos e costumes.
 
Vítor Silva Dias
Membro integrado doutorado do (CIDEHUS) Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades, Universidade de Évora 
 
Referências Bibliográficas:
DIAS, V. S. (2014). A Cerâmica de Ammaia. Partes I-II. Dissertação de doutoramento, Universidade de Évora, Évora, Portugal. Policopiado.
NEVES, J. C. (1972). Uma colecção particular de materiais romanos de Aramenha. Conímbriga, 11, Coimbra, p. 5-34.
NOLEN, J. U. S. (1985b). Cerâmica comum de Necrópoles do Alto Alentejo. Vila Viçosa: Fundação da Casa de Bragança. Lisboa.
PINTO, I. V. (1999). A Cerâmica Comum de São Cucufate. Partes I-IV. Dissertação de doutoramento, Universidade Lusíada, Lisboa, Portugal. Policopiado.
SANTOS, C. R. (2011). As cerâmicas de produção local do centro oleiro da Quinta do Rouxinol. Dissertação de mestrado, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal.
VIANA, A. & DEUS A. D. (1958). Campos de urnas do concelho de Elvas, Paço Ducal de Vila Viçosa materiais da secção arqueológica. Separata de o Instituto, vol. 118, Coimbra, Tipografia da Coimbra Editora Limitada, p. 1-61. 
 

 

MAIO

 

 

Ânfora de vinho, procedente da Ilha de Rodes, Grécia.
 
Cerâmica
 
Meados do século I / inícios do II
 
Nº de Inventário: MAMM010130
 
Dimensões: 76cm de alt., 22cm de larg. máx., 10cm diâm. da boca, 9,2 larg. do colo, com capacidade para cerca de 25 litros.
 
Na Antiguidade, as ânforas eram o que hoje são as garrafas e latas, recipientes de tara perdida que viajavam e se adquiriam pela importância do que traziam e não pelo seu valor enquanto cerâmicas. Por isso, estes contentores assumem especial relevância para o conhecimento das relações entre diferentes lugares, porque se presume ser o local de fabrico do vasilhame o mesmo que o do produto transportado, sendo o local onde se encontra a ânfora o seu destino final, ou seja, o lugar onde se consumiu o conteúdo.
 
As ânforas tinham uma forma padronizada, adequada ao transporte no interior de navios: um corpo largo, usualmente fusiforme, cilíndrico ou ovóide, um gargalo (colo) alto, mais estreito que o corpo, e provido de duas asas simétricas e um fundo rematado por um espigão (bico) estreito, cónico ou cilíndrico. A sua morfologia adequava-se ao transporte por via marítima: as dimensões uniformes, o corpo mais largo que o colo, possibilitando o bom acondicionamento no interior das embarcações, deixando espaço livre onde poderia encaixar a parte terminal, rematada pelo bico, e deste modo dispor diferentes fiadas sobrepostas de ânforas, tirando pleno partido do espaço disponível no navio e garantindo que a carga se mantinha fixa durante a viagem. Bico e asas funcionavam como pegas, uteis para todas as operações de carga e descarga das embarcações.
 
Dentro deste padrão geral, as ânforas tinham distintas formas, provavelmente, para que fosse evidente para o consumidor a sua proveniência e a natureza do produto que transportavam. Hoje em dia, para além dos aspectos formais, podemos determinar com segurança a origem de uma ânfora, pela análise das características do seu fabrico. Assim, as ânforas deste período da Ilha de Rodes, Grécia, caracterizavam-se por esta peculiar forma: um pequeno bordo de secção circular, encimando um colo alto e estreito, de onde partem duas elegantes asas, com espigões na parte superior (frequentemente designados como “cornos”), desenhando um arco ao encontro da parte superior do corpo, este, é alongado, com visíveis estrias de alisamento, e rematado por um bico cónico. Constituem exemplares bem concebidos e fabricados naquela ilha grega, mercê de uma secular tradição de produção de contentores para o transporte à distância do vinho local. 
 
As ânforas de vinho da Ilha de Rodes conheceram uma ampla distribuição na metade ocidental da bacia do Mediterrâneo e mais além, até paragens atlânticas. Estão documentadas na Península Itálica, na Sicília, na Sardenha, no Sul de França e Ilhas Baleares, mas foi sobretudo a sua presença significativa na Grã-Bretanha e ao longo do rio Ródano, ou seja, na direcção das áreas militarizadas de fronteira do Império Romano, a partir do reinado de Cláudio (41-54), que levou os investigadores a supor que a difusão para estas paragens poderia resultar do cumprimento de um tributo imposto aos ródios, por aquele Imperador, mais do que de uma vulgar difusão comercial, que seguramente também existiria. 
 
No ocidente da Península Ibérica, conhecemos exemplares destas ânforas no litoral (Algarve, estuários do Tejo e Sado), mas também no interior, por exemplo, em Idanha-a-Velha, na região de Elvas e em Augusta Emerita (Mérida), a capital da província da Lusitânia, a que Ammaia pertencia. 
 
Naturalmente, não temos meios para saber de que forma e em que enquadramento chegou à cidade de Ammaia o vinho grego. Se por uma situação de comércio normal, de qualquer forma, suficientemente complexa, porque a importação e recepção das ânforas teria de se fazer em um qualquer ponto do litoral e, a partir daí, reexpedidas para o interior; se em virtude de uma qualquer distribuição de índole institucional. Recorde-se que a cidade de Ammaia homenageou o Imperador Cláudio e este poderia de algum modo retribuir o voto dos habitantes locais.
 
De uma forma ou de outra, o vinho grego presente nesta cidade lusitana não constituía de modo algum um produto de primeira necessidade. Não era grego, mas certamente local, o vinho consumido pelos seus habitantes, pelo que estamos na presença de um artigo que hoje designaríamos como “gourmet”. Esta ânfora constitui também uma prova do grau de integração das distintas regiões do Império Romano, no âmbito daquilo a que hoje em dia frequentemente se chama a “globalização romana”.
 
Carlos Fabião
Coordenador Científico
Fundação Cidade de Ammaia

 

 

ABRIL

 

 

CAIXA DE SELOS
 
As caixas de selos eram destinadas ao fecho de correspondência, em rolos de papiro ou tábuas enceradas, ou de bolsas de couro ou tecido com objetos de valor. Geralmente feitas em bronze, apresentavam grande variedade de formas e tamanhos. 
Eram constituídas por uma base e por uma tampa articulada, com decoração, muitas vezes esmaltada com 2 ou 3 cores. A base apresentava paredes laterais, geralmente com cerca de 5mm de altura e com dois entalhes opostos, e 3 a 5 orifícios circulares. Alguns exemplos têm círculos gravados em torno dos orifícios, criados pelo uso de punção. A tampa articulada, sob a forma de dobradiça, podia ser ligada de maneiras diferentes. As caixas apresentavam ainda na extremidade oposta à da dobradiça uma espécie de encaixe: um elemento saliente na tampa encaixava numa zona perfurada da base de forma e evitar o seu movimento lateral.
O fecho era realizado com um cordão, que passava pelos orifícios da base da caixa, pelo objeto a fechar e pelos entalhes nas paredes da caixa; por fim, era vertida cera quente, de forma a manter o cordão no sítio. Pensa-se que poderia ainda ser impresso um selo, com um anel de sinete, na cera ainda quente e antes do fecho da caixa. Esta impressão serviria como assinatura pessoal do seu proprietário. Desta forma, garantiam a autenticidade do conteúdo e asseguravam a inviolabilidade da correspondência, uma vez que não era possível a abertura dos documentos sem desintegrar o selo ou cortar os cordéis.
A peça em destaque este mês é o único exemplar de caixa de selos da Cidade Romana de Ammaia. Em forma de folha, em liga de cobre é constituída apenas pela base, plana com três orifícios rodeados por três marcas circulares. Apresenta a dobradiça com um elemento em liga de ferro a fazer a união dos dois aros da base com um fragmento do que seria o aro da tampa, aqui inexistente. Na ponta oposta observa-se uma zona perfurada. Na parede ainda existente é possível ver um dos entalhes laterais.
 
 
Nº Inventário: (Est.1)Cu.02.Cj.004
Material - Liga de cobre + liga de ferro
Técnica de fabrico: Por fundição em molde. Orifícios realizados a punção.
Peso (gr): 3,73
Medidas máximas (cm) Comp.: 3,85; Larg.: 1,75; Alt.: 0,65; Esp.: 0,05

 

 
Carina Maurício
Conservadora Restauradora
Laboratório de Conservação e Restauro 
Fundação Cidade de Ammaia
 

 

 

MARÇO

 

 
Estátua de Togado com bulla
 
Meados do século I
 
Descrição: Trata-se de uma estátua masculina, com a clássica toga. Falta-lhe a cabeça, que se fixava no orifício superior, o antebraço direito e a mão esquerda, que se uniam ao corpo por espigões metálicos (puntelli), de que se conservam vestígios, e toda a porção inferior aos joelhos. Sobre o peito pende uma bulla com um diâmetro de sete centímetros. A bulla era uma espécie de medalhão usada pelos filhos de cidadãos, nascidos livres, até atingirem a maioridade. Suspensa por um fio, apresentava o formato de caixa redonda ou oval, constituída por duas partes unidas e fechadas, contendo amuletos. Poderia ser de diferentes materiais, desde couro, prata, marfim ou ouro.
A toga, símbolo de cidadania entre os romanos, sofreu evoluções ao longo do tempo, desde a época republicana aos finais do Império, sobretudo no modo de traçá-la. São justamente essas variações que permitem de algum modo datar as diferentes estátuas masculinas togadas. Variava de forma, volume e cor de acordo com o estatuto social. Consistia num grande pano de lã branca natural, com forma semicircular ou oval (neste caso, dobrada a meio) e supõe-se que teria aproximadamente 5,5 metros de comprimento e cerca de 2,1 metros no ponto máximo de largura. Era uma peça tão complicada de usar que alguns teriam um escravo seguindo-os para a reorganizar caso ela escorregasse. A toga colocava-se pelas costas, com uma das pontas lançada sobre o ombro esquerdo, pendendo, à frente, até aos pés. A outra ponta passava-se sob o braço direito, tombando, à frente, em fartas pregas, quase até ao chão. Levantava-se depois até ao ombro esquerdo, passava-se sobre este e deixava-se tombar pelas costas. Provavelmente era mantida apenas pelo próprio peso e dobras. A parte pregueada que caía à frente formava o sinus; o enrolamento do pano acima da cintura chamava-se balteus; e a bossa ou protuberância que se armava acima do balteus era o umbo. 
A estátua terá sido recolhida em circunstâncias desconhecidas e transformada em mascarão de fonte, algures pelos inícios do século XIX, o erudito espanhol, D. José de Viu refere-se-lhe e ao seu reaproveitamento em uma fonte no lugar da Escusa, em obra publicada no ano de 1852.
Provavelmente, representaria um jovem da dinastia Júlio-Cláudia. No reinado do Imperador Cláudio, nos meados do século I, tornou-se moda a representação da família imperial, incluindo a descendência, em conjuntos escultóricos que adornavam os principais edifícios públicos das cidades, nas províncias do Império. O modo de representar a toga do exemplar de Ammaia é compatível com esta cronologia.
 
Nº de Inventário: MAMM020180
Tipo de Material: Mármore
Comprimento: 97 centímetros
Largura: 60 centímetros
Espessura máxima braço esquerdo: 32 centímetros
Espessura máxima braço direito: 20 centímetros
 
Carlos Fabião 
Professor Doutor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Dulce Osório
(Bolseira da FCT) e Conservadora-restauradora no Laboratório da Fundação Cidade de Ammaia
 
 
Referências bibliográficas
 
Viu, D. José de (1852) Estremadura. Colección de sus Inscripciones y Monumentos, seguida de Reflexiones Importantes sobre lo pasado, lo presente y el provenir de estas provincias. Madrid: Imprenta de D. Pedro Montero.
Oliveira, Jorge, 1991 Estátua Romana da Escusa, Aramenha – Marvão, Ibn Maruán, 1, p. 85-96.
 
 
Intervenção de Conservação e Restauro da Estátua de Togado com bulla
 
Estado de conservação 
 
A Estátua de Togado com bulla encontrava-se de uma forma geral em mau estado de conservação. De forma sucinta descreve-se os fenómenos de alteração; um depósito superficial de poeiras em toda a superfície; camadas de cal sobrepostas resultantes de várias caiações localizadas na zona frontal; concreções calcárias espessas concentradas na área do tardoz e na parte frontal do togado, lacunas de pequenas dimensões um pouco por toda a peça; dois elementos metálicos incrustados no interior das mangas em corrosão ativa; pátina natural de cor laranja e amarela. 
Regista-se ainda, que a estátua foi intencionalmente adulterada não só a nível estrutural mas também estético, em que é visível um grande orifício redondo na parte frontal da peça, que atravessa a mesma de um lado ao outro. 
Segundo Oliveira, J; (1991, p. 88) “Na Escusa, a estátua estava acimentada num nicho da fonte da casa que o Sr. Joaquim Bugalho havia comprado em 1955 à família Semedo. Nesta fonte, a estátua não servia de conduta de água, tinham-lhe colocado uma tosca cabeça de argamassa, cujos restos ainda pudemos observar junto à fonte. Como nos informou o seu anterior proprietário, estava totalmente caiada e não se vislumbrava o largo orifício que hoje apresenta. Estava certamente tapado com argamassa. A bica da fonte localizava-se alguns centímetros abaixo do nicho onde se guardava a estátua”.
 
 
Descrição da Intervenção
 
• Limpeza por via seca com auxílio de trinchas de pelo macio e de um aspirador.
• Remoção das camadas de cal com auxílio de bisturi.
• Remoção das concreções calcárias com auxílio de um equipamento elétrico com pontas adequadas para o efeito.
• Limpeza por via húmida com água e detergente neutro com esponjas naturais.
• Estabilização química dos elementos metálicos com ácido tânico.
 
 

 

 

 

FEVEREIRO

 

 
Jarro de Vidro Romano
Jarro globular de bocal trilobado.
Altura 150mm, Diâmetro máximo 120mm. Incolor esverdeado
Jarro completo de depósito globular, base côncava ápode, gargalo cilíndrico curto, bocal trilobado repuxado e rebatido, asa de fita com apoio para polegar.
Forma Isings 88b. Produção lusitana
Cronologia: Incerta (em uso nos sécs. II – III d.C.)
Número de inventário: MNA 13667
 
O jarro de vidro que ora apresentamos como peça em destaque do mês de Fevereiro, da rubrica intitulada “Doze meses – Doze peças”, é interveniente no núcleo dos vidros da colecção Maçãs, pertencente ao acervo do Museu Nacional de Arqueologia, como o próprio acrónimo do seu número de inventário assim o denuncia.
A colecção Maçãs é, actualmente, constituída pela aglomeração de duas colecções distintas, não pelo seu conteúdo, mas pela categoria. Uma das colecções, já existente desde as primeiras décadas do século XX nas reservas do Museu Nacional de Arqueologia, foi “alimentada” pelo Sr. António Maçãs, proprietário local e amigo de José Leite de Vasconcelos, fundador deste Museu, como é comprovado na troca de correspondência entre ambos. Para além das peças que enviava ao seu amigo Leite de Vasconcelos, guardava algumas para si, constituindo, assim, também ele, uma colecção particular. Esta última foi engrossar a do Museu em Lisboa, em 2008, por disposição testamentária da Dr.ª Delmira Maçãs, filha do Sr. António Maçãs. É pois, e actualmente, a união dessas duas colecções de peças que tem na Ammaia a sua origem, que se traduz a colecção Maçãs, integralmente propriedade do Museu Nacional de Arqueologia. Esta colecção, que engloba diferentes tipologias de materiais, no que concerne aos vidros, conta com 31 recipientes inteiros e 5 completos ou quase, perfazendo um total de 36 peças, um número considerável se compararmos com outras cidades romanas em território actualmente português. Pode ser considerada uma das melhores colecções de vidros, não porque a qualidade do vidro seja excepcional, mas pelo seu estado de conservação, a que não devem ser alheias as características dos solos que envolvem a Ammaia, de origem granítica e naturalmente ácidos, sendo por isso favorável à preservação do vidro.
 
Aqui, compete-nos falar exclusivamente sobre esta peça, que não sabemos detalhadamente as condições do seu achado, mas presumivelmente esta poderá ter sido descoberta, por exemplo, em pilhagens de sepulturas, circunstância que pode explicar também o excelente estado de conservação em que se apresenta.
Trata-se de um jarro globular de bocal trilobado e pertence ao tipo Isings 88b, caracterizando-se por ter um bocal repuxado na frente e rebatido lateralmente, que, como afirma Mário Cruz (Cruz, 2015) é contrária às formas tardias em que o bocal é apenas rebatido lateralmente.
No que respeita à função social, ou funções sociais, da peça, ela pode ter tido a função utilitária como jarro, servindo às mesas romanas, usado para servir bebidas. Provavelmente, não a uma mesa qualquer, uma vez que se trata de uma peça que podemos apelidar de “luxuosa”. Pode ter tido, por outro lado, apenas uma função votiva, sendo a sua função exclusiva a de acompanhar o defunto, fazendo parte do espólio funerário. Ou pode ainda ter tido ambas as funções. Esta última hipótese parece ser de descartar uma vez que, pela fragilidade da peça, se tornaria difícil manter-se em tão bom estado de conservação como uso continuado no serviço de bebidas.
Sabemos ainda, que esta peça possui dois paralelos, um proveniente da Herdade do Reguengo, Vaiamonte (Alarcão, 1984, nº1) e o outro da necrópole de Serrones, à guarda do Museu Arqueológico de Vila Viçosa (Alarcão e Alarcão, 1967, nº27). A particularidade que relaciona estes três exemplares é o desenho da asa, encimado por uma espécie de trinco, que pressupõe uma proveniência comum. Como já J. Alarcão havia mencionado: “Não deixa de ser curioso assinalar que estas três peças (as únicas que conhecemos deste tipo em Portugal) provêm de uma região limitada do Alto Alentejo, como se o centro de produção ficasse algures no convento emeritense ou no nordeste do pacense”(Alarcão, 1984, p.173). Não sendo assim, proveniente do centro de produção da cidade de Ammaia, onde foram detectadas evidências claras de produção local de vidro no sector da Porta Sul, tais como restos de fabrico e lascas de vidro bruto, que provam suficientemente a existência desse centro de produção, que ainda Mário Cruz aponta que teria funcionado até finais do séc. IV ou inícios do séc. V.
A peça, bem como as restantes peças em vidro, poderá ser vista no Museu Cidade de Ammaia, na exposição temporária “Ad Aeternitatem – os espólios funerários de Ammaia a partir da colecção Maçãs do Museu Nacional de Arqueologia”, inaugurada em 15 de Maio de 2015 e aqui visitável até Dezembro de 2016.
 
Publicações: 
Alarcão, J. de (1971) “Vidros romanos de Aramenha e Mértola”, O Arqueólogo Português, série III, vol. V, Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, lisboa, p.190-205;
Alarcão, Adilia e Gomes, Mário Varela (1989), “Da Proto-História aos alvores da Idade Média”, In O vidro em Portugal, Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, Lisboa, p. 15-25;
Cruz, Mário da (2009ª) Vitra Vitri. O vidro Antigo em Portugal. Museu Nacional de Arqueologia, Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa, Lisboa.
Cruz, Mário da (2015), Espolio funerário de Ammaia. Os vidros. In Catálogo da Exposição “Ad Aeternitatem – Os espólios funerários de Ammaia a partir da Colecção Maçãs do Museu Nacional de Arqueologia. Museu Nacional de Arqueologia, Museu Cidade de Ammaia.
 
Sofia Borges
Museu Cidade de Ammaia/ Fundação Cidade de Ammaia
 
 
 

JANEIRO

 

Homenagem do município de Ammaia ao imperador Lúcio Vero

 

Uma das fontes de informação mais sólida sobre a vida pública da cidade de Ammaia é constituída pelas inscrições. Entre elas destaca-se um pequeno monumento, mas de elevada qualidade, que constitui um dos testemunhos mais importantes para a história desta cidade romana da Lusitânia. O seu texto diz o seguinte:

 

Imp(eratori) Caes(ari) L(ucio) Aure/lio Vero Aug(usto) / divi Antonini f(ilio) / pont(ifici) max(imo) trib(unicia) pot(estate) / co(n)s(uli) II p(atri) p(atriae) / municip(ium) Ammai(ense)

 

Tradução: O município de Ammaia dedica ao imperador César Lúcio Aurélio Vero Augusto, filho do divino Antonino, com o poder tribunício, pontífice máximo, cônsul pela segunda vez, pai da pátria.

 

A sua relevância decorre, em primeiro lugar, do facto de esta inscrição corresponder a um acto público datado precisamente de 166 d. C. Nesse ano o município de Ammaia tomou a decisão de homenagear o imperador Lúcio Vero, colocando-lhe uma dedicatória num lugar proeminente da praça pública, o forum - o espaço que representava o centro da vida política da cidade romana. Nele se situava a cúria, o lugar onde reunia a assembleia do município, constituída pelos decuriões, as figuras mais importantes da vida pública de Ammaia. Foram eles certamente que decidiram promover esta iniciativa em nome de toda a comunidade cívica, exprimindo dessa forma a sua conformidade com a cultura romana e uma das suas referências institucionais e ideológicas, a figura do imperador.

 

O texto identifica Lúcio Vero de forma canónica, como seria de esperar nestas circunstâncias oficiais, através do seu nome e da filiação, referindo neste caso o seu antecessor e pai adoptivo (Antonino Pio), como é habitual nesta dinastia em que a adopção foi de regra. Seguem-se os seus títulos, à cabeça dos quais vem o poder de tribuno, um cargo que constitui a essência do regime e por isso os imperadores o renovam sistematicamente, tendo aqui atingido o seu sétimo ano de exercício, embora sem a correspondente referência. Vem depois a função de pontífice máximo, de natureza religiosa, mas igualmente de profundo significado político, de primeira importância numa sociedade onde estes dois planos necessariamente se misturam. Continua o elenco com a alusão ao facto de ter exercido a magistratura tradicionalmente mais elevada, o consulado, por duas vezes. Termina com a concessão do título honorífico de “pai da pátria”, atribuído precisamente no ano de 166, o que constitui o fundamento para a datação precisa da epígrafe.

 

Além disso, esta inscrição atesta a condição jurídica de município da cidade de Ammaia, o que representava um privilégio em relação a muitas comunidades do mundo romano. Não se sabe exactamente quando a civitas Ammaiensis (designação atestada numa outra epígrafe) teria recebido esse estatuto municipal, discutindo-se hipóteses que, no caso da proposta mais recuada, se atribuíra essa alteração a uma liberalidade do imperador Cláudio (41-54 d. C.), ao qual a cidade prestou uma homenagem anual. Outros autores, no entanto, situam essa modificação jurídica sob Vespasiano (69-79 d. C.) ou outro princeps posterior.

 

Por fim, esta epígrafe anda associada com a questão do nome do lugar cujos vestígios se situam em S. Salvador de Aramenha. Conhecido desde o séc. XVI, este monumento encontrava-se na ermida do Espírito Santo, em Portalegre, razão pela qual a tradição não associou o nome de Ammaia a esses restos arqueológicos, preferindo geralmente a correspondência desse lugar com a antiga Medobriga. No entanto, o célebre epigrafista alemão Emílio Hübner tinha já referido que o dito município amaiense deveria situar-se preferivelmente nesse espaço, onde tinham sido identificados muitos outros documentos epigráficos, alguns ostentando nomes de magistrados. A questão só se resolveu definitivamente com o aparecimento nesse lugar de uma outra homenagem imperial, desta vez dedicada a Cláudio, promovida pela civitas Ammaiensis, que J. Leite de Vasconcelos deu a conhecer em 1935.  

 

(Amílcar Guerra, UNIARQ, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa)